segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Escutatória







" Sempre vejo anunciados cursos de oratória.Nunca vi anunciado curso escutatória.

Todo mundo quer aprender a falar . Ninguém quer aprender a ouvir .Pensei em oferecer um curso de escutatória . Mas acho que ninguém vai se matricular.



Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que " não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores . É preciso também não ter filosofia nenhuma ."

Filosofia é um monte de ideias , dentro da cabeça , sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos . Diante de nós , fora da cabeça , nos campos e matas , estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas . O que está fora não consegue entrar . A gente não é cego . As árvores e as flores entram . Mas - coitadinhas delas - entram e caem num mar de ideias.

São misturadas nas palavras da filosofia que mora em nós .Perdem a sua simplicidade de existir .Ficam outras coisas . Então , o que vemos não são as árvores e as flores . Para se ver é preciso que a cabeça esteja vazia.

Faz muito tempo , nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás, duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos . Quanto maior o sofrimento, mais bonitas são a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir -se literariamente como mulher de sofrimentos . A alma é uma literatura . É nisso que se baseia a psicanálise ...(Voltando ao ônibus .Falavam de sofrimentos . Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim , esperando , evidentemente , o aplauso, a admiração , uma palavra de acolhimento na alma da outra que , supostamente , ouvia .

Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte : " Mas isso não é nada ... "A segunda iniciou , então , uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.

Parafraseio o Alberto Caeiro : " Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito .

É preciso também que haja silêncio dentro da alma . " Daí a dificuldade : a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor , sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer . Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer , que é muito melhor . No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus . Certo estava Lichtenberg - citado por Murilo Mendes :

" Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas ." Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade : no fundo , somos os mais bonitos...

Tenho um velho amigo, Jovelino , que mudou para os Estados Unidos , estimulado pela revolução de 64 .Pastor protestante ( não "evangélico " ) , foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA , voltado para minorias . Contou-me de sua experiência com os índios . As reuniões são estranhas . Reunidos os participantes , ninguém fala . Há um longo silêncio .( Os pianistas , antes de iniciar o concerto , diante do piano , ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando . Não rezando . Reza é falatório para não ouvir .Orando . Abrindo vazios de silêncio. . Expulsando todas as ideias estranhas . Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma ) .
Todos em silêncio , à espera do pensamento essencial . Aí , de repente , alguém fala . Curto . Todos ouvem . Terminada a fala , novo silêncio .Falar logo em seguida seria um grande desrespeito .Pois o outro falou os seus pensamentos , pensamentos que julgava essenciais .
Sendo dele , os pensamentos não são meus . São -me estranhos . Comida que é preciso digerir . Digerir leva tempo . É preciso tempo para entender o que o outro falou . Se falo logo a seguir são duas as possibilidades .
Primeira : " Fiquei em silêncio só por delicadeza . Na verdade , não ouvi o que você falou . Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola ) fala. Falo como se você não tivesse falado ."
Segunda : " Ouvi o que você falou . Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo . É coisa velha para mim . Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou ."
Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo . O que é pior que uma bofetada .
O longo silêncio quer dizer :
" Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou ." E assim vai a reunião .
Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio .
Faz alguns anos passei uma semana num mosteiro na Suíça , Grand Champs . Eu e algumas outras pessoas ali estávamos para , juntos , escrever um livro . Era uma antiga fazenda .
Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber . Havia uma disciplina de silêncio , não total , mas de uma fala mínima . O que me deu enorme prazer às refeições . Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida . Também para comer é preciso não ter filosofia . Não ter obrigação de falar é uma felicidade . Mas logo fui informado de que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por dia : às 7 da manhã, ao meio -dia e às 6 da tarde . Estremeci de medo . Mas obedeci . O lugar sagrado era um velho celeiro , todo de madeira,teto alto . Escuro . Haviam aberto buracos na madeira , ali colocando vidros de várias cores . Era uma atmosfera de luz mortiça , iluminado por algumas velas sobre o altar , uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo .Uns poucos bancos arranjados em " U " definiam um amplo espaço vazio , no centro , onde quem quisesse podia se assentar numa almofada , sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da hora marcada . Era um grande silêncio . Muito frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam levadas por um vento impetuoso que descia dos Alpes . A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia , como se fosse um navio de madeira num mar agitado . O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram . Estranhei . Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava . E ninguém tomava providências . Todos continuavam do mesmo jeito , sem nada fazer . Ninguém que se levantasse para dizer : " Meus irmãos , vamos cantar o hino ...." Cinco minutos , dez , quinze . Só depois de vinte minutos é que eu , estúpido , percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes . As pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio . E eu comecei a me alimentar de silêncio também . Não basta o silêncio de fora . É preciso silêncio de dentro . Ausência de pensamentos .
E aí , quando se faz o silêncio dentro , a gente começa ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir .
Fernando Pessoa conhecia a experiência , e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras , no lugar onde não há palavras . E música , melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar . A música acontece no silêncio . É preciso que todos os ruídos cessem . No silêncio , abrem -se as portas de um mundo encantado que mora em nós - como no poema de Mallarmé , A catedral submersa , que Debussy musicou . A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada . Somos todos olhos e ouvidos . Me veio agora a ideia de que , talvez , essa seja a essência da experiência religiosa - quando ficamos mudos , sem fala . Aí , livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia , ouvimos a melodia que não havia , que de tão linda nos faz chorar . Para mim Deus é isto : a beleza que se ouve no silêncio . Daí a importância de saber ouvir os outros : a beleza mora lá também ...
Comungão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto ........"
[ Rubem Alves ]
Fonte: http ://rubemalves.locaweb.com.br/hall/wwwpct3/newfiles/escutatoria.php





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